O TEXTO FOI PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 1982 MAS COMO É ATUAL...
LEIA O TEXTO E REFLITA BEM SOBRE O QUE ELE QUER MOSTRAR
Poluição
21.03.1982
Rachel de Queiroz
Recebo carta aflita de um amigo sertanejo, inconformado com a ameaça de atirarem o nosso lixo atômico no famoso Raso da Catirina. Sossegue o meu compadre, pois parece que o perigo passou. O Raso velho continuará como reserva ecológica, entregue aos seus bichos nativos e às lembranças de Lampião. Pelo menos é o que os homens lá de cima prometem.
Desde que se fala em lixo atômico e das trágicas ameaças que a sua acumulação – ou disposição – acarretam, eu me pergunto: por que eles ainda não se lembraram (ou, se se lembraram, ninguém falou nisso) de encher um foguete com os detritos concentrados no material atômico e lançá-lo para além da nossa zona de gravitação?
Perdido no espaço sideral, esse lixo mortífero não faria mal a ninguém, talvez fosse gravitar na órbita de algum asteróide morto, ou se visse atraído por um cometa vagabundo.
De qualquer forma, o espaço, lá em cima, é infinito mesmo, enquanto os nossos oceanos, em comparação, são gotas microscópicas; e a terra firme, essa, nem está aí...
Mas também não são hoje apenas mar e terra que nos preocupam. Dantes, a gente confundia o céu azul – quero dizer, o ar que nos cerca – com o infinito. Recordo uns versinhos – são de Casimiro? – que a gente recitava na escola: “Eu me lembro, eu me lembro, era pequeno/E brincava na praia, o mar bramia...”
Nesses versos o filho pergunta a mãe que é que pode ser mais forte do que o mar e maior do que o céu, e a mãe responde que maior e mais forte do que os dois, só Deus .
Era assim que ser encarava o céus sem limites, em termos de semelhança com Deus. Hoje, estamos todos fartos de saber que o envolvido de ar azul que nos cerca é muitíssimo mais tênue do que a gente pensava e precisava. É muito mais corruptível , impregnando – se de vapores peçonhentos , e aprisionando sobre nós as exalações mortíferas das desgraçadas invenções do louco engenho humano.
Imagino que , com seu progresso da técnica , eles tentarão dar um jeito e, não tarda , haverá tratadores de ar para purificar a atmosfera; ou quem saber se obtenha oxigênio novo decompondo a água do mar . Ou ainda talvez o processo seja a destilação do próprio ar ambiente, de acordo com a lei de que na natureza nada se perde , tudo se transforma. Ou será que já revogaram esta lei?
O fato é que o velho conceito sobre o que era puro ou impuro foi subvertido. O fogo, outrora o grande purificador é hoje o grande poluidor. Queimar o lixo das cidades era o luxo máximo dos departamentos de limpeza urbana. Edifício que se preza , sem incinerador d elixo, nem merecia o nome de edifício. Hoje, incinerador é anátema , proibido pela Polícia e perseguido como jogo de bicho. E se estudam todas as maneiras de enterrar lixo, afogar lixo, destilar lixo, reciclar lixo, aproveitar lixo como fonte de energia. Tudo , contanto que não o queimem, transformando – o em mais um elemento de poluição do nosso poluído ar.
No remate das contas , parece que o que está havendo mesmo é gente demais no mundo. Pois todos sabemos que a poluição não se formou exclusivamente , é obra exclusiva do homem.
E, assim, o provável é que, antes que a poluição acabe com a vida no planeta, a própria natureza tome as suas providências, segundo aquele seu critério tradicional de manter o equilíbrio biológico. Dá um revertere, diminui a capacidade de reprodução humana ou lhe aumenta a fragilidade física ou atira os homens a alguma aventura exterminadora – uma migração em massa, como as das avoantes no sertão, como as nuvens de gafanhotos nos desertos ou como o suicídio coletivo das baleias , tal qual houve há anos nas praias da Baixa Califórnia.
E reparem que não falei em bomba atômica.
Um comentário:
Texto simplesmente brilhante.
muito bom...
Postar um comentário