Devastação abrupta
18/3/2011
Eu vejo, tu vês, eles não veem... E quando viram, já era tarde demais! Haviam arrancado os pulmões e parte do coração da cidade. Ouvi um grito funéreo na noite de carnaval. Não era o grito do abre-alas. Não era o grito do pierrô, bêbado de amor. Era o grito das árvores tombadas, sangrando a seiva. O bem-te-vi apaixonado já escolhera o cajueiro da direita como sua morada após o casamento. A noiva chorosa repetia a frase que os homens detestam ouvir das mulheres: "Eu não disse que aqui era uma área de risco?" Como resposta, o bem-te-vi apaixonado emitiu um canto triste e quem tivesse ouvidos de ouvir entenderia: "Nunca imaginei que eles seriam capazes de destruir tudo". Agora, um verdadeiro deserto. Sequer o rastro do arvoredo onde adormeciam tantas aves ao anoitecer. Ao clarão das madrugadas, a passarada estará voando às tontas, sem rumo, em busca de outras árvores onde tecerão ninhos. Neles verão nascer suas crias que alegrarão os corações humanos. Humanos? Onde estão os humanos corações que já não conseguem se emocionar com a vida em torno de si? Onde se encontra a sensibilidade humana que, apressada, não consegue perceber o doce canto dos bem-te-vis, dos sabiás, dos periquitos, o currupaco dos papagaios falantes ou o voo certeiro dos gaviões? Cidadãos conscientes existem e, por sorte, se encontravam nesta cidade. Desvencilharam-se do vazio da individualidade. Perceberam a devastação abrupta e impensada. Indignaram-se. Gritaram e seus gritos repercutiram por fugirem à mesmice da indiferença. Que o eco perdure e não caia no vácuo daqueles que não suportam reivindicações e mudanças. O direito à propriedade privada não pode ser negado. Contudo, é importante que a coletividade assegure a aplicação adequada do Código de Obras e Posturas de Fortaleza. As regras, além de claras, sensatas e humanizadas, devem ser obedecidas. Fiscalização permanente. Caso contrário, as pessoas viverão um eterno clima de insegurança e insatisfação em uma cidade onde cada um faz o que bem quer. Uma cidade sem dono. Um chão sem pátria. Convivência insustentável e selvagem ao extremo. Com certeza, não é o que a maioria deseja.Celina Côrte Pinheiro - médica
Fonte: DIÁRIO DO NORDESTE
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