Carcinicultura: desastre sócio-ambiental no ecossistema manguezal do nordeste brasileiro
segunda-feira 11 de julho de 2005 por Jeovah Meireles
A indústria da carcinicultura levou em conta unicamente os custos de mercado, em detrimento dos danos ambientais, ecológicos, culturais, sociais e à biodiversidade. Comunidades foram expulsas de suas atividades tradicionais. Índios estão em grave perigo de perder suas bases alimentar e cultural. Pescadores foram torturados, ameaçados de morte e impedidos de pescar. Agora é de extrema necessidade a imediata paralisação das atividades de produção de camarão em Áreas de Preservação Permanente (APP’s) e a recuperação dos setores degradados. E, definitivamente, levar em conta as denúncias e os anseios dos povos do mar, considerando seus motivos para preservar ecossistemas que sustentam suas comunidades e que irão garantir a qualidade de vida das futuras gerações.
Relatório do deputado federal João Alfredo (relator do GT-Carcinicultura) para a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara Federal, caracterizou danos sócio-ambientais de elevada magnitude no ecossistema manguezal do nordeste brasileiro. Consta de uma abordagem regional da produção de camarão, diagnósticos específicos, denúncias das comunidades tradicionais, relatórios técnicos e os resultados de 11 audiências públicas. Os impactos ambientais foram amplamente caracterizados, definidas as ações integradas e participativas dos órgãos de gestão (com as instituições governamentais e entidades da sociedade civil envolvidas) e enumerados os aspectos a serem considerados na revisão das Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e Conselhos e Órgãos Estaduais de Meio Ambiente.
Os viveiros de camarão promoveram: i) desmatamento do manguezal, da mata ciliar e do carnaubal; ii) extinção de setores de apicum; iii) soterramento de gamboas e canais de maré; iv) bloqueio do fluxo das marés; v) contaminação da água por efluentes dos viveiros e das fazendas de larva e pós-larva; vi) salinização do aqüífero; vii) impermeabilização do solo associado ao ecossistema manguezal, ao carnaubal e á mata ciliar; viii) erosão dos taludes, dos diques e dos canais de abastecimento e de deságüe; ix) ausência de bacias de sedimentação; x) fuga de camarão exótico para ambientes fluviais e fluviomarinhos; xi) redução e extinção de habitats de numerosas espécies; xii) extinção de áreas de mariscagem, pesca e captura de caranguejos; xiii) disseminação de doenças (crustáceos); xiv) expulsão de marisqueiras, pescadores e catadores de caranguejo de suas áreas de trabalho; xv) dificultou e/ou impediu acesso ao estuário e ao manguezal; xvi) exclusão das comunidades tradicionais no planejamento participativo; xvii) doenças respiratórias e óbitos com a utilização do metabissulfito; xviii) pressão para compra de terras; xvii) desconhecimento do número exato de fazendas de camarão; xix) inexistência de manejo; xx) não definição dos impactos cumulativos e xxi) biodiversidade ameaçada.
No Estado do Ceará, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA-Brasil) realizou o mais completo estudo sobre os impactos ambientais da carcinicultura. As 245 fazendas de camarão (novembro de 2005), com uma área total de 6.069,97 hectares, foram visitadas para a definição de aproximadamente 39 indicadores diretos de impactos ambientais.
Verificou-se que, do total das fazendas licenciadas pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (SEMACE), 84,1% causaram impactos diretamente ao ecossistema manguezal (fauna e flora do mangue, apicum e salgado); 25,3% promoveram o desmatamento do carnaubal e 13,9% ocuparam áreas antes destinadas a outros cultivos agrícolas de subsistência. No rio Jaguaribe, 44,2% das piscinas de camarão foram construídas interferindo diretamente no ecossistema manguezal e 63,6% promoveram danos de elevada magnitude a um dos mais importantes carnaubais de nossas bacias hidrográficas.
Dados mais assustadores foram definidos nos estuários dos rios Pirangi, Acaraú, Coreaú e Timonha, com 89,5%, 96,9%, 90,9% e 100% respectivamente, com as atividades de criação de camarão dentro do ecossistema manguezal (nos rios Acaraú, Coreaú e Timonha, 78,1%, 72,7% e 81,8% respectivamente, provocaram desmatamentos da vegetação de mangue). A maioria dos empreendimentos gera sérios riscos de disseminação de espécies exóticas, pois não dispõe de mecanismos de segurança eficientes para evitar a invasão de uma espécie de camarão (Litopenaeus vannamei) estranha e nociva aos manguezais do Brasil. Somente 21,6% dispunham de licença correspondente a sua fase de implantação e dentro do prazo de validade.
Nas fazendas abandonadas, os diques continuam como nas que estão em operação, inviabilizando as reações ambientais que dão sustentação à diversidade biológica do manguezal e dos demais ecossistemas das bacias hidrográficas. Verificou-se também que 77% das fazendas de camarão não contam com bacias de sedimentação (lançam seus efluentes na água dos rios, lagoas e estuários), o que vem a confirmar os elevados danos ambientais já definidos por pesquisadores das Universidades, representantes de Comitês de Bacias, ambientalistas e comunidades tradicionais. Com tais níveis de insustentabilidade, 67,9% dos criatórios foram acometidos por enfermidades (63% no litoral leste e 90% no oeste), com a morte dos camarões e a provável contaminação de outros organismos nativos.
Liberar investimentos sob a alegativa de que vão gerar empregos, considerada a mais forte argumentação dos empreendedores, não será mais justificativa, pois foi definido que o índice médio de empregos diretos observado na totalidade das fazendas é até 3,20 vezes menor do que o divulgado pela Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC). No rio Acaraú, por exemplo, foi definido um índice 6,3 vezes menor do que o propalado pelos carcinicultores. Quando a SEMACE libera a construção de fazendas de camarão dentro do ecossistema manguezal (apicum e salgado) e nas demais unidades de preservação permanente (áreas úmidas, mata ciliar e carnaubal), através de pareceres técnicos que orientam o Conselho Estadual de Meio Ambiente (COEMA), está cometendo um grave dano sócio-ambiental.
A Resolução do COEMA N° 02/2002, que trata da carcinicultura no Ceará, deverá ser completamente revista e os licenciamentos suspensos. Estudos desenvolvidos pelo Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), determinaram que o apicum é regido pelos processos ecodinâmicos e geoambientais que se desenvolvem no ecossistema manguezal. Antigos setores de apicum agora se encontram completamente cobertos pela vegetação de mangue. Contraria frontalmente o que explicita tal Resolução “ecossistema de estágio sucessional tanto do manguezal como do salgado, onde predomina solo arenoso e relevo elevado que impede a cobertura dos solos pelas marés, sendo colonizado por espécies vegetais de caatinga e/ou mata de tabuleiro”.
Mais ainda, estudos evolutivos da cobertura vegetal em salinas abandonadas demonstraram alta capacidade de regeneração por vegetação de mangue. Verificou-se que bastou ser restabelecida a entrada das marés (rompimento dos diques abandonados), desencadeando as trocas de matéria e energia, a ciclagem de nutrientes e mudanças nos valores de salinidade da cobertura sedimentar, para o início da revegetação e a entrada da fauna. A Resolução do COEMA mais uma vez trata equivocadamente a dinâmica ambiental do ecossistema manguezal, quando definiu salinas abandonadas como “áreas antropizadas que geram ecossistemas apresentando hipersalinidade residual de solo, e conseqüentemente baixa capacidade de regeneração natural por vegetação de mangue”.
O relatório do GT-Carcinicultura da Câmara Federal definiu as bases para ações efetivas de preservação do ecossistema manguezal, de melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais e da retomada da biodiversidade: i) rever a legislação explicitando o apicum e o salgado como unidades geoambientais e ecodinâmicas pertencentes ao ecossistema manguezal e portanto de preservação permanente; ii) exigir para a implantação das atividades de produção de camarão em cativeiro a delimitação das Terras da União, dos terrenos de marinha e seus acrescidos, a demarcação de terras das comunidades nativas e o reconhecimento das posses legítimas mansas e pacíficas das comunidades tradicionais; iii) regulamentar a implantação de fazendas de camarão em unidades de conservação e em terra indígenas; iv) definir uma zona de distanciamento mínimo das fazendas de camarão dos assentamentos humanos, resguardando as áreas de atividades tradicionais, de drenagem superficial vinculada ao uso tradicional e às demais atividades de subsistência (pesca, mariscagem, agricultura e usufruto dos recursos naturais); v) delimitar os sistemas de produção (intensivo e extensivo) a partir do potencial sustentável de suporte dos ecossistemas envolvidos e da efetiva disponibilidade de água, assegurando a continuidade das atividades tradicionais de pescadores, marisqueiras, índios, ribeirinhos e quilombolas vinculadas à pesca, à mariscagem, à agricultura e ao usufruto dos recursos naturais; vi) fixar índices máximos (biológicos, químicos e físicos) para o lançamento dos efluentes das atividades de produção e beneficiamento do camarão em cativeiro; vii) determinar que sejam emitidas licenças somente a partir de efetivas ações de uso e manejo adequados de implementos e substâncias químicas potencialmente danosas à saúde humana e da qualidade dos sistemas ambientais envolvidos, na produção e industrialização do camarão; viii) determinar que licenciamentos e financiamentos sejam feitos de acordo com a definição dos impactos cumulativos, do estado de fragmentação dos ecossistemas envolvidos e a disponibilidade de água a partir de projeções de uso a curto, médio e longo prazos; ix) determinar que licenciamentos e financiamentos sejam feitos a partir de planos e programas (com dotação orçamentária) de recuperação de áreas degradadas com o abandono da atividade de produção de camarão em cativeiro; x) determinar que licenciamentos e financiamentos estejam vinculados à efetiva instalação de barreiras fitossanitárias para a produção, importação e exportação dos produtos associados à carcinicultura e; xi) determinar que licenciamentos e financiamentos sejam realizados a partir dos projetos que evidenciem programas de controle e manejo na introdução/invasão de espécies exóticas.
Jeovah Meireles (meireles@ufc.br) é Prof. Dr. do Depto. de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)
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