quinta-feira, 8 de abril de 2010

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A escola flutuante do Recife
 
Por Neco Tabosa
 
Uma rotina diferente de professores e estudantes que participam do projeto de educação ambiental em barco que navega nas águas do rio Capibaribe
 
O despertador do professor Alfio Mascaro toca às seis da manhã de uma sextafeira. Na noite anterior ele dormiu por volta da meia noite e meia, montando provas “apaguei, não dava mais. O dia tinha sido super puxado. Pensei: amanhã continuo”, conta esse neto de italianos e filho de pernambucanos que nasceu no Rio de Janeiro e veio morar no Recife aos 2 anos de idade.
 
Sempre bem-humorado e falante, o ex-bancário e ex-vendedor de sanduíches naturais de 49 anos impressiona pela energia que transmite quando fala de um dos seus assuntos prediletos: educação. Na condição de professor ou de estudante, já que atualmente o bacharel licenciado em geografia é mestrando do Programa de Pós-Graduação e Desenvolvimento e Meio Ambiente Prodema da UFPE e ainda cursa aulas de percussão. “A equipe da escola brinca dizendo que eu sou hiperativo”, diz, sem desacelerar.
 
Antes de sair de casa, no bairro da Madalena, em direção ao Bairro do Recife, ele ainda monta oito questões de Geografia para um simulado de vestibular e passa um e-mail para esta reportagem. Às oito e meia, Alfio já está na praça do Marco Zero, pouco antes dos 50 alunos, com idades entre 10 e 11 anos, da Escola Municipal Nossa Senhora do Pilar chegarem acompanhados de três professoras e uma estagiária.
 
Eles são recebidos pela equipe da Escola Ambiental Águas do Capibaribe – o Barco Escola – um sala de aula flutuante que recebeu em 2008 o Prêmio Vasconcelos Sobrinho para projetos ambientais da Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (CPRH). Uma das primeiras preocupações é checar se todos os alunos trouxeram as autorizaçõesassinadas por um responsável para embarcar.
 
Outra dúvida é confirmar a altura da maré, o que determina o percurso da incursão pedagógica pelo rio Capibaribe. Nos períodos de lua cheia e lua nova, nas chamadas ‘marés de sigiza’, os alunos têm o privilégio de visitar a diversidade do Parque dos Manguezais, o segundo maior manguezal urbano do Brasil, que está seriamente ameaçado pela criação clandestina de camarões em viveiros ao longo do seu leito. Naquela sexta-feira, a maré era de lua crescente e o caminho escolhido foi o que contorna a Ilha do Recife Antigo.
 
Ainda em terra, os alunos aprendem noções básicas de segurança na navegação, e embarcam para vestir seus coletes salva-vidas. Só aí o barco se prepara para zarpar.
 
Escola Ambiental – Em 2002, Alfio foi convidado pela Secretaria de Educação do Recife para fazer parte do grupo que projetou, desenvolveu e construiu o barco. Ele chegou a medir a altura das pontes do Centro do Recife, ser um dos redatores do projeto pedagógico e visitar a oficina de construção náutica em Cabedelo, na Paraíba. Quando o barco estava pronto, surgiu o novo convite: acumular as funções de professor e diretor da escola.
 
“Foi um trabalho coletivo e que selou o compromisso da Prefeitura na questão da Educação Ambiental. A ideia surgiu nas reuniões para discutir o Projeto Pedagógico da nova gestão da rede pública de ensino, quando notou-se a falta de percepção que estudantes e professores tinham dos rios. Isso na cidade que é popularmente conhecida como a ‘Veneza brasileira’”.
 
Durante a aula no barco, os professores se revezam na condução dos assuntos, lembrando que todos ali são responsáveis pelo equilíbrio e preservação do meio ambiente. A equipe do Barco Escola quase nunca consegue repetir o mesmo roteiro de aula. “Tem o benefício da novidade, é sempre uma turma nova e os professores estão muito atentos às alterações da vida no rio para incorporar novos assuntos. É o trabalho ideal para um idealista”, completa a professora Jerrana Cantarelli, uma das três biólogas que compoem o quadro de professores com três geólogos.
 
Ecologia aplicada – Quando assume o microfone, Alfio aproveita que a turma é da comunidade do Pilar, no Porto do Recife e a aula passa a ser sobre Geopolítica. “Vocês sabiam que estão estudando a possibilidade de, daqui a 15, 20 anos  transformarem parte do porto em um complexo turístico? Cheio de espaços culturais e prédios gigantes? Onde é que vocês vão estar nessa história? Será que a comunidade de vocês vai ficar ali no mesmo lugar? Será que vocês vão morar num desses prédios?”.
 
Um menino responde: “Que lenda!”, que na linguagem popular do recifense quer dizer: que mentira! Ao que o professor retruca, rindo: “Lenda? Não é lenda, não. Isso vai acontecer, e vocês têm que pensar nisso”. E a aula segue com mais observações das alterações da paisagem ao longo dos tempos. O istmo que estava ligado a Olinda e hoje forma a ilha do Recife, que servia para ancoragem das caravelas. Os resíduos sólidos (plásticos, cordas de navio) que a turma encontra no caminho. Além de outros recursos pedagógicos, como uma foto de satélite para entender o caminho percorrido, e a leitura  cantada de um forró com um refrão hipnótico “Capibaribe / vamos limpar esse rio / vamos limpar esse rio...”.
 
Uma hora e meia depois, na volta para o marco zero, os alunos são chamados para dizer o que mais chamou a atenção deles no percurso. Os depoimentos variam entre o interesse pelas esculturas de Francisco Brennand, a escola vista do rio, o  aparecimento de um Sotalia guianensis (uma espécie de boto cinza) que encantou a cena logo no começo da incursão. Mas a imagem negativa mais citada é uma só: a quantidade de lixo no rio.
 
O professor José Hildo pergunta: “E como a gente faz para não ter lixo no rio?”. Lucas Soares, de 10 anos, responde: “Jogando o lixo no lugar certo”. “O lixo que jogam no canal lá na sua comunidade tem a ver com esse lixo que a gente vê aqui?”. Os meninos respondem, em coro: “Tem”. “E o que a gente vai dizer pra quem for visto jogando lixo no canal, no rio? Que tá certo ou que tá errado?”. “Tá erraaado”.
 
Tarde na base terra – Quando não está dando aula no barco, Alfio pode ser encontrado na administração da escola, às voltas com cálculos e telefonemas para manter o projeto funcionando. Ele aproveita o dia calmo para comentar a importância das parcerias e os ajustes que a equipe faz diariamente.
 
“Recebemos um treinamento adequado da Marinha do Brasil para conhecer o barco, seus equipamentos e as leis que regem a  navegação. Teve uma vez que um cabo grosso de outro barco enganchou no motor e ele saiu do eixo, danificando os calços – que mantém o motor suspenso, evitando trepidação –. As peças só podiam ser compradas em São Paulo ou no Japão. Aí nós adaptamos calços de motor de caminhão. Ajustamos num torneiro e, de cerca de R$ 2.000, o custo caiu para R$ 210. É que uma semana com o barco parado significa quase 500 crianças que não fazem a incursão, essa é a nossa motivação”, explica Alfio.
 
São oito horas da noite, e antes de sair para mais uma atividade, Alfio ainda tem fôlego para comentar os prós e os contras de trabalhar na rede pública.
 
“Educação é importante, mas não só ela. É preciso cuidar paralelamente da geração de empregos e renda. Agora, o trabalho do professor podia ser mais valorizado. Vejo muitos colegas ficando doentes, enfartando, com câncer. Essa loucura de ter que se dividir entre vários empregos, não ter tempo adequado pra fazer um mestrado e se especializar com qualidade, na minha opinião, é a maior dificuldade da rede pública de ensino. E o piso nacional, que é uma piada.”
 
Neco Tabosa é jornalista
 
 

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