sábado, 17 de abril de 2010

REFLEXÕES SOBRE TRAGÉDIAS NO RIO DE JANEIRO

Direito de morar, direito à cidade para os pobres
 
Por Maria Lúcia de Pontes
 
As fortes chuvas que assolaram o Estado nos últimos dias, além de produzir danos irreparáveis para centenas de famílias, que ainda enterram seus mortos, colocaram mais uma vez o direito de morar dos pobres no banco dos réus, em declarações reiteradas do prefeito do Rio de Janeiro.
 
Antes de iniciar uma pequena reflexão sobre essas declarações, gostaria de sugerir algumas indagações:
 
1) As comunidades pobres são as responsáveis pelo desequilíbrio ambiental de nossas cidades?
 
2) Remover é a única solução possível para os assentamentos precários?
 
3) Há programa habitacional do município do Rio de Janeiro que oferece imediatamente terra urbanizada e segura por valores compatíveis com a renda dos pobres?
 
4) Se há programa habitacional regular do município do Rio de Janeiro que garanta processos sérios de reassentamento da população fixada em área de risco comprovado para as famílias, quais os exemplos em que o reassentamento aconteceu?
 
Depois das indagações vamos para as afirmações:
 
A moradia é direito social, reconhecido pela Constituição da República no art. 6º. e em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, portanto não podem ser acusados de demagogos os defensores deste direito.
 
Demagogia é ignorar a culpa do poder público na situação em que vivem milhares de famílias nesta cidade, obrigadas a buscar abrigo em áreas irregulares por absoluta falta de opção de acesso a terra urbanizada e segura.
 
Demagogia é falar de remoção compulsória dos moradores dos assentamentos precários, inclusão do nome em lista de espera por moradias em construção, num programa de crédito sem prazos de entrega das casas e oferecimento de três meses de aluguel social como solução habitacional para a ocupação desorganizada do solo, sem considerar a urbanização e execução de obras de infra-estrutura das comunidades consolidadas.
 
A pobreza é culpada de diversos males, tanto é assim que sua erradicação é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, expresso no inciso III do artigo 3º. de nossa Carta Magna, o que não significa que a culpa pela pobreza seja dos pobres, ao contrário, os pobres são as vítimas, devem ser considerados grupo vulnerável e necessitam de atenção especial dos governantes nos programas de seus governos, para que consigam ultrapassar esta situação que limita o exercício dos direitos.
 
A experiência de mais de 20 anos do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro na defesa das comunidades acusadas, conjugado com estudos sérios neste campo, demonstram as contradições e os equívocos desta tese que está baseada, fundamentalmente, em uma leitura preconceituosa e discriminatória da realidade social, que procura esconder as verdadeiras razões pela degradação ambiental e fixação de tantas famílias em áreas inadequadas na cidade do Rio de Janeiro.
 
Quando as famílias procuram a Defensoria Pública e ingressamos com processos judiciais em que obtemos proteção liminar para que se mantenham em suas casas, buscamos garantir que a administração pública respeite o direito de moradia num procedimento democrático, apresentando laudo técnico produzido com a participação das famílias e que, caso resulte em confirmação de representar a área risco para as famílias, sejam reassentadas em área próxima da comunidade, como determina o art. 429 da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro e não apenas sendo jogadas nas ruas.
 
Sabemos, ou deveríamos saber que, a única culpa humana que pode ter agravado o resultado dos eventos naturais que assolaram nosso Estado é dos homens que aplicam uma política pública que se preocupa apenas com os negócios, o lucro e a “higienização das cidades”, não destinando as verbas públicas necessárias para a urbanização das comunidades e segurança das moradias dos pobres, reassentando em moradias melhores e de forma adequada as famílias que residem em áreas comprovadamente de risco.
 
Devo consignar por último que, neste momento de imensa dor pela qual passam centenas de famílias, sem casa e sem seus entes queridos: filhos, mães, pais, maridos, mulheres, etc., é cruel demais ainda terem que suportar, nos ombros tão cansados pela dor dos escombros a que estão reduzidas suas vidas, a acusação de serem as responsáveis pelas mortes e devastação da cidade, e como defensora pública preciso exercer minha atribuição constitucional de produzir a defesa integral dos acusados e nesta posição, afirmo convicta de que, estamos diante de vítimas das chuvas e da falta de política habitacional, esta sim, capaz de causar a morte de centenas de famílias!
 
Maria Lúcia de Pontes é defensora pública do Estado do Rio de Janeiro - Núcleo de Terras e Habitação
 
(publicado originalmente no NPC (Núcleo Piratininga de Comunicação)
 

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