sábado, 6 de fevereiro de 2010

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Direitos humanos e direitos da natureza? Texto do Eduardo Galeano
Escrito por Rodrigo Travitzki
Seg, 13 de Abril de 2009 14:33
 
Os direitos humanos não surgiram no início dos tempos, como se pode imaginar. Eles são um
dos produtos do iluminismo, algo ainda recente na história humana. Hoje, as corporações
também têm "direitos humanos", como se fossem pessoas - o que alguns consideram uma das
grandes aberrações da modernidade, causa de muitos males que vivenciamos. Vale a pena v
er o filme "The Corporation"
. Se discute também os "direitos animais", principalmente na pesquisa científica e industrial, em
especial de produtos cosméticos. Mas e os direitos da natureza? A natureza deve ter direitos?
É isso que está sendo discutido na elaboração da nova Constituição do Equador. A coisa é
mais interessante do que parece. Veja abaixo um belo texto do Galeano.
A natureza não é muda
Eduardo Galeano
Brecha (semanário uruguaio)
 
O Equador está discutindo uma nova Constituição. Entre as propostas, abre-se a possibilidade
de reconhecer, pela primeira vez na história, os direitos da natureza. Parece loucura querer
que a natureza tenha direitos. Em compensação, parece normal que as grandes empresas dos
EUA desfrutem de direitos humanos, conforme foi aprovado pela Suprema Corte, em 1886.
O mundo pinta naturezas mortas, sucumbem os bosques naturais, derretem os pólos, o ar
torna-se irrespirável e a água imprestável, plastificam-se as flores e a comida, e o céu e a
terra ficam completamente loucos.
E, enquanto tudo isto acontece, um país latino-americano, o Equador, está discutindo uma
nova Constituição. E nessa Constituição abre-se a possibilidade de reconhecer, pela primeira
vez na história universal, os direitos da natureza.
A natureza tem muito a dizer, e já vai sendo hora de que nós, seus filhos, paremos de nos
fingir de surdos. E talvez até Deus escute o chamado que soa saindo deste país andino, e
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Direitos humanos e direitos da natureza? Texto do Eduardo Galeano
Escrito por Rodrigo Travitzki
Seg, 13 de Abril de 2009 14:33
acrescente o décimo primeiro mandamento, que ele esqueceu nas instruções que nos deu lá
do monte Sinai: "Amarás a natureza, da qual fazes parte".
Um objeto que quer ser sujeito
Durante milhares de anos, quase todo o mundo teve direito de não ter direitos.
Nos fatos, não são poucos os que continuam sem direitos, mas pelo menos se reconhece,
agora, o direito a tê-los; e isso é bastante mais do que um gesto de caridade dos senhores do
mundo para consolo dos seus servos.
E a natureza? De certo modo, pode-se dizer que os direitos humanos abrangem a natureza,
porque ela não é um cartão postal para ser olhado desde fora; mas bem sabe a natureza que
até as melhores leis humanas tratam-na como objeto de propriedade, e nunca como sujeito de
direito.
Reduzida a uma mera fonte de recursos naturais e bons negócios, ela pode ser legalmente
maltratada, e até exterminada, sem que suas queixas sejam escutadas e sem que as normas
jurídicas impeçam a impunidade dos criminosos. No máximo, no melhor dos casos, são as
vítimas humanas que podem exigir uma indenização mais ou menos simbólica, e isso sempre
depois que o mal já foi feito, mas as leis não evitam nem detêm os atentados contra a terra, a
água ou o ar.
Parece estranho, não é? Isto de que a natureza tenha direitos... Uma loucura. Como se a
natureza fosse pessoa! Em compensação, parece muito normal que as grandes empresas dos
Estados Unidos desfrutem de direitos humanos. Em 1886, a Suprema Corte dos Estados
Unidos, modelo da justiça universal, estendeu os direitos humanos às corporações privadas.
A lei reconheceu para elas os mesmos direitos das pessoas: direito à vida, à livre expressão, à
privacidade e a todo o resto, como se as empresas respirassem. Mais de 120 anos já se
passaram e assim continua sendo. Ninguém fica estranhado com isso.
Gritos e sussurros
Nada há de estranho, nem de anormal, o projeto que quer incorporar os direitos da natureza à
nova Constituição do Equador.
Este país sofreu numerosas devastações ao longo da sua história. Para citar apenas um
exemplo, durante mais de um quarto de século, até 1992, a empresa petroleira Texaco
vomitou impunemente 18 bilhões de galões de veneno sobre terras, rios e pessoas. Uma vez
cumprida esta obra de beneficência na Amazônia equatoriana, a empresa nascida no Texas
celebrou seu casamento com a Standard Oil. Nessa época, a Standard Oil, de Rockefeller,
havia passado a se chamar Chevron e era dirigida por Condoleezza Rice. Depois, um oleoduto
transportou Condoleezza até a Casa Branca, enquanto a família Chevron-Texaco continuava
contaminando o mundo.
Mas as feridas abertas no corpo do Equador pela Texaco e outras empresas não são a única
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Direitos humanos e direitos da natureza? Texto do Eduardo Galeano
Escrito por Rodrigo Travitzki
Seg, 13 de Abril de 2009 14:33
fonte de inspiração desta grande novidade jurídica que se tenta levar adiante. Além disso, e
não é o menos importante, a reivindicação da natureza faz parte de um processo de
recuperação das mais antigas tradições do Equador e de toda a América. Visa a que o Estado
reconheça e garanta o direito de manter e regenerar os ciclos vitais naturais, e não é por
acaso que a Assembléia Constituinte começou por identificar seus objetivos de renascimento
nacional com o ideal de vida do sumak kausai. Isso significa, em língua quechua, vida
harmoniosa: harmonia entre nós e harmonia com a natureza, que nos gera, nos alimenta e nos
abriga e que tem vida própria, e valores próprios, para além de nós.
Essas tradições continuam miraculosamente vivas, apesar da pesada herança do racismo,
que no Equador, como em toda a América, continua mutilando a realidade e a memória. E não
são patrimônio apenas da sua numerosa população indígena, que soube perpetuá-las ao
longo de cinco séculos de proibição e desprezo. Pertencem a todo o país, e ao mundo inteiro,
estas vozes do passado que ajudam a adivinhar outro futuro possível.
Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a conquista européia
castigou a adoração da natureza, que era pecado de idolatria, com penas de açoite, forca ou
fogo. A comunhão entre a natureza e o povo, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e
depois em nome da civilização. Em toda a América, e no mundo, continuamos pagando as
conseqüências desse divorcio obrigatório.
Publicado originalmente no semanário Brecha , do Uruguai.
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
Fonte:
Agência Carta Maior (23/04/2008) http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cf
m?materia_id=14956

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