quarta-feira, 10 de novembro de 2010

LEIA E REFLITA

Quimioterapia para a Terra?

Suponha que a atmosfera terrestre esteja doente e que essa doença, o aquecimento global, fosse um tumor (não é boa a analogia, mas serve para falar de terapias possíveis). A melhor estratégia, claro, teria sido a prevenção: fazer exames periódicos de mama e de próstata, a partir de uma certa idade, evitar alguns alimentos e tomar banho de sol só com protetor solar.
O câncer, porém, já se instalou, como o aquecimento global. Quanto mais cedo e diretamente for atacado, melhor. Por exemplo, cortando o suprimento de sangue, como fazem certos medicamentos que tentam conter a formação de vasos sanguíneos que irrigam o tumor e permitem que se espalhe.
É o que se chama, em matéria de clima, de "mitigação". Em lugar de sangue, o suprimento daninho que se deve cortar é o de dióxido de carbono. Com menos emissões de usinas termelétricas a combustíveis fósseis (óleo, carvão, gás natural), do setor de transportes e de desmatamento, o tumor para de crescer.
Caso a mitigação esteja difícil de conseguir, como provou o fôlego curto do Protocolo de Kyoto, pode-se tentar combater o câncer com força bruta. Por exemplo, extirpando o tumor com uma cirurgia.
Aqui a analogia começa a fazer água, porque não há bisturi capaz de arrancar calor (radiação) retida na atmosfera. Mas é possível pensar em intervenções na infraestrutura construída pelo homem sobre a Terra, como preparar cidades e agricultura para um eventual aumento de chuvas e de enchentes, ou a falta delas e as secas. Em matéria de clima, fala-se em "adaptação".
Agora, considere a hipótese de que tudo isso falhe, e que a temperatura da Terra suba mais rápido do que calculamos, sem sobrar tempo nem dinheiro para adaptar a civilização. Resta como último recurso a quimioterapia: empregar munição pesada para tentar matar as células tumorais, ainda que ao custo da matança de células inocentes do doente, como as que mantêm os cabelos, e de um mal-estar terrível.
No que respeita à atmosfera terráquea, esse recurso extremo seria a geoengenharia, ou, como preferem alguns, a climaengenharia (ou, ainda, engenharia do clima). Trata-se de intervenções em larga escala na fisiologia da Terra, capazes de alterar o metabolismo de energia e gases que a mantém em constante movimento - chuvas, ventos, ondas, estações etc.
Um exemplo: a ideia antiga de "adubar" oceanos com ferro, fator limitante para a proliferação de micro-organismos capazes de fazer fotossíntese. Vitaminados, eles se multiplicariam e consumiriam mais CO2 da atmosfera. Efeito similar pode ser alcançado com a plantação de gigantescas florestas: para crescer, as árvores precisam fazer fotossíntese e tirar dióxido de carbono do ar.
Há outras propostas, como pintar de branco os telhados das casas. As cidades de hoje são ciclopicamente grandes, e essa imensa área refletiria mais luz do sol de volta para o espaço (a quantidade de energia devolvida é chamada por climatologistas de "albedo"). Haveria menos radiação disponível para ser aprisionada por gases do efeito estufa e alimentar o aquecimento global.
Não faltam noções ainda mais mirabolantes. Já se falou em lançar milhares de espelhos em órbita, para barrar a radiação solar antes mesmo que chegue ao planeta.
Outro conceito, já defendido pelo Nobel Paul Crutzen, seria injetar na atmosfera nuvens de partículas, em quantidade suficiente para fazer sombra, um pouco como ocorre com a matéria ejetada em grandes erupções vulcânicas, a exemplo do monte Pinatubo.
Assim como acontece com a quimioterapia, o risco é enorme. Um pequeno erro de dosagem pode ter consequências devastadoras para a saúde do doente.
Não seria trivial controlar um crescimento indesejável de micro-organismos marinhos, por exemplo. E sombrear um planeta do tamanho da Terra custaria caro, decerto, bem mais que mitigar a emissão de gases ou financiar a adaptação ao aquecimento global inevitável, já "contratado".
É por isso que muita gente se opõe a essas opções ultratecnológicas, que se alimentam da visão prometeica segundo a qual os males da tecnologia podem e devem ser curados com mais tecnologia. Para esses arautos da harmonia e do equilíbrio, o bom senso indica que sempre haverá efeitos não pretendidos nem previsíveis.
Eles estão com a razão, em seu chamado à cautela. Há muita coisa para ser feita antes de gastar bilhões em coisas de resultado incerto. Mas será que faz sentido descartar de saída a possibilidade de precisarmos de quimioterapia?
De certo modo, foi isso que decidiram 179 países reunidos em Nagoya, Japão, ao adotar na semana passada um protocolo para regulamentar a Convenção da Biodiversidade. Eles optaram por uma moratória de propostas de climaengenharia. A precaução tem algum sentido, pois ajuda a frear a tendência de alguns países, como os EUA, de privilegiar soluções tecnológicas e unilaterais.
Se a moratória implicar interromper ou deixar de financiar estudos em geoengenharia, contudo, podem estar dando um tiro no pé. Ninguém quer fazer quimioterapia. Mas só um homeopata maluco, fundamentalista até a raiz dos cabelos, seria contrário a pesquisar novos medicamentos quimioterápicos.
Marcelo Leite MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço.

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