Artigo
Becos da cidade
José Borzacchiello da Silva
08 Mai 2010 - 16h32min
A cidade tem que ser vivida, descoberta no cotidiano de seus cidadãos. Quando mal estruturada e desigual não facilita e nem permite uma relação de intimidade com seus habitantes. Em Fortaleza as pessoas parecem aprisionadas de uma rotina repetitiva e exaustiva. Casa, trabalho, escola e compras parecem completar o ciclo cotidiano. Como destruir essas amarras? De que forma descobrir recantos da capital cearense? Não se trata de um programa exclusivo. Tenho certeza que o turista gostaria de conhecer a cidade na perspectiva de seu modo de vida, buscando apreender seus principais traços, especialmente, aqueles mais marcantes e às vezes, totalmente desconhecidos. Uma cidade completa costuma ter lugares inusitados capazes de surpreender. Fortaleza em sua diversidade tem muito que mostrar, variando de recantos aprazíveis a outros, aparentemente, não identificáveis, de imediato. 08 Mai 2010 - 16h32min
O beco como logradouro público é pouco conhecido na Fortaleza formal. Está mais presente nas favelas e loteamentos clandestinos. Entretanto, em plena área central, alguns são famosos, mesmo que pouco frequentados. Para mim, o Beco do Alho é o mais intrigante por sua forma e configuração. É nele que descubro uma cidade escondida, um pouco mágica com seu percurso sinuoso, portas, passagens estreitas. Impossível não se sentir seguido ou espreitado quando atravessamos os becos.
O Centro de Fortaleza guarda nos becos vestígios de territórios de desenho medieval, algo estranho para uma cidade moderna que se firmou com seu traçado em forma de xadrez com avenidas largas concebidas no plano de Adolpho Herbster, nos idos de 1875. O visitante não pode imaginar que em Fortaleza tenha esses pedaços urbanos que escondem mistérios. O Beco do Alho está ali, entre a Rua Conde D-Eu, onde, uma porta comercial como todas as outras, nega, praticamente, sua presença. Na outra extremidade, a Rua Governador Sampaio, a do tradicional comércio atacadista de Fortaleza. No conjunto com o Mercado São José, esse setor da cidade assentado sobre um afluente do Pajeú, denuncia em sua topografia, as inclinações do terreno quando fazemos todo o percurso. Pequeno e ao mesmo tempo cheio de mistérios, o Beco do Alho tem algo de labiríntico, comum nos lugares singulares, que insistem em manter suas peculiaridades.
São muitas as campanhas orientadas no sentido de transferir o comércio atacadista do centro da cidade. Trata-se de movimentos que se apoiam no argumento do difícil transbordo de cargas daquela área. Sem dúvida nenhuma, é inusitado verificar o número de carretas que trafegam com dificuldade na estreita rua e em suas imediações. Ali vemos carregadores com seus carrinhos e outros que pegam enormes sacas cheias de cereais ou caixas de mercadorias, carregando ou descarregando, enchendo ou esvaziando galpões estreitos e profundos. A sonoridade marca o lugar. É diferente. Ecoam os gritos desses trabalhadores cumprimentando seus companheiros ou pedindo passagem. Abrem caminho empurrando os sacos sobre os transeuntes desavisados, observadores ocasionais desatentos que atrapalham a faina diária desses homens ágeis e musculosos. Em plena rua, pessoas simples catam as perdas dos pesados sacos. Buscam garantir a ração mínima.
No Beco do Alho é sempre inusitado o transcurso dos que tentam vencer a fricção da distância entre a Rua Conde D-eu e a Governador Sampaio. Numa direção, saímos num barzinho e por uma de suas portas, o resto do caminho. Vendedores ambulantes oferecem seus produtos. Além do Beco a cidade esconde suas entranhas, seus segredos, porções aparentemente amorfas e anônimas que se negam ao grande público. Indiferente à cidade aberta e escancarada, exposta a todos e aos turistas, aquela Fortaleza minúscula se guarda, se protege , negando as inovações tecnológicas. Vale a pena ver o Beco. Constatar que a Fortaleza metropolitana não conseguiu apagar seus lugares mais recônditos. Que a cidade das praias e das alegres noites tem outros encantos, dependendo de gostos e desejos.
Manuel Bandeira dedicou ``O último poema do Beco`` ao Beco das Carmelitas no Rio de Janeiro. Aqui em Fortaleza, Adolpho Caminha, certamente atravessou o Beco do Alho, talvez sem esse nome e, com certeza, dali ganhava tempo para vigiar os passos da Normalista.
José Borzacchiello da Silva escreve mensalmente neste espaço
JOSÉ BORZACCHIELLO DA SILVA - Geógrafo e professor da UFC
borza@secrel.com.br
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