Brasileiros ainda adoecem por falta de saneamento básico |
ESCRITO POR RAQUEL JÚNIA |
SEXTA, 18 DE NOVEMBRO DE 2011 |
Imagine se na sua casa não chegasse água encanada. Agora, imagine que o esgoto da sua rua corresse a céu aberto; ou que todo o seu esgoto doméstico e o de seus vizinhos fosse jogado no córrego mais próximo. Se você é morador de uma das 33 cidades brasileiras que não contam com abastecimento de água, ou de uma das mais de duas mil onde não há uma rede coletora de esgoto, sabe que esse cenário vai além da imaginação. De acordo com o Atlas do Saneamento 2011, divulgado recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há uma grande desigualdade entre as regiões do Brasil no quesito saneamento. A partir dos dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB 2008), o Atlas mostra, por exemplo, que na região Norte do país, apenas 3,5% dos municípios contam com esgotamento sanitário. De acordo com o estudo, de 2000 a 2008 as condições de saneamento melhoraram levando-se em conta todo o território nacional, apesar disso, menos da metade dos domicílios brasileiros (45,7%) tem acesso à rede de esgoto. "Se a universalização da rede de abastecimento de água, coleta de esgoto e de manejo de resíduos sólidos constitui parâmetro mundial de qualidade de vida já alcançado em grande parte dos países mais ricos, no Brasil a desigualdade verificada no acesso da população a esses serviços ainda constitui o grande desafio posto ao Estado e à sociedade em geral nos dias atuais", considera o IBGE, na apresentação do Atlas. De acordo com o Atlas, o saneamento, e mais especificamente o serviço de esgotamento sanitário, avançou mais onde a população mais cresceu, sobretudo nos grandes centros urbanos. Ainda assim, caso você seja morador de uma grande capital, mesmo do Sudeste - a região que, segundo o Atlas, é a melhor desenvolvida em termos de saneamento -, pode ser que a poucos quilômetros de sua casa encontre situações visíveis de problemas nos serviços de esgoto. A menos de um quilômetro de onde esta reportagem foi escrita, no Rio de Janeiro, é possível ver esgoto sendo escoado em um canal de água, um grave problema, conforme alerta o relatório, sem contar o uso que essa população faz da própria água contaminada. O tamanho do desafio Contaminação das águas e do solo, adoecimento da população, deslizamentos e inundações: de acordo com o Atlas, todas essas são conseqüências da falta de políticas efetivas de saneamento básico. Mas para entendermos o tamanho do desafio que o Brasil tem nessa área, é preciso entender o que é saneamento. A professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Simone Cynamon, define: "As pessoas confundem o saneamento com os elementos que o compõem, como abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo, drenagem pluvial. Tudo isso é a infra-estrutura básica, e todos esses serviços compõem o saneamento. O ser humano é produtor de resíduos, bebemos água e geramos urina, por exemplo. A água que consumimos vem do rio, é tratada e chega até nós com um nível certo de potabilidade. Ao utilizarmos essa água, geramos um resíduo líquido. Então, toda essa água que descartamos, da cozinha, do banho, é esgoto. O saneamento, portanto, é essa ciência que trabalha a proteção do ser humano e do meio ambiente onde ele está inserido. Porque quanto mais se joga resíduo no meio ambiente, mais ele irá gerar doença no ser humano, é um ciclo vicioso", explica. A professora observa que a preocupação do ser humano com esse cuidado é bastante antiga. "Na pré-história, só o fato de existirem poços para proteger a água já era uma medida de saneamento, só que as pessoas não definiam assim. Nos povos da América, no Peru, por exemplo, havia esquemas de captação de água de chuva, formas diferentes de lidar com os resíduos. Na Roma antiga, havia aquedutos, que é uma forma de conduzir a água. Então, o saneamento existia muito antes da sociedade que conhecemos existir", diz. A professora ressalta que a população que não tem saneamento é adoecida. Ela destaca que, no Brasil, de 20% a 30% das habitações constituem assentamentos urbanos precários, situação acompanhada de problemas de saneamento. "Há problema de cólera, de hepatite. Mesmo que o esgotamento seja composto de 20% de matéria sólida e 80% de matéria líquida, esses 20% servem de matéria para bactérias e vírus se alimentarem. Há várias doenças de veiculação hídrica gravíssimas, cujo tempo de latência é de dez a 15 dias, de modo que só se perceberá o adoecimento depois. A diarréia que adquirimos muitas vezes não tem a ver com a alimentação, como geralmente se associa, mas é causada justamente por bactérias de água contaminada. Se você lava a fruta com água contaminada, está ingerindo esta contaminação", alerta. O Atlas mostra que a média brasileira de internações por doenças relacionadas a problemas de saneamento diminuiu entre 1993 e 2008, passando de cerca de 750 a cada 100 mil habitantes para cerca de 300. Entretanto, só em 2008, nos estados do Pará e Piauí, ocorreram de 900 a 1200 internações para cada 100 mil habitantes - os piores estados brasileiros nesse aspecto, seguidos pelo Maranhão, Rondônia e Paraíba, com índices de internação entre 600 e 900 para cada 100 mil habitantes. Embora o quadro geral brasileiro aponte uma queda no percentual de internações por diarréia, o mapa das mortes por essa doença em 2009, também de acordo com o Atlas, mostra regiões críticas nos estados do Pará, Bahia, Piauí, Maranhão, nas fronteiras entre Paraíba e Rio Grande do Norte, e Goiás e Mato Grosso. A ocorrência de dengue é outro grave problema contido no Atlas. Dessa vez, estados da região Sudeste também aparecem entre aqueles com maior incidência da doença. O maior número de casos se concentra, em ordem decrescente, nos estados de Sergipe, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Norte, Tocantins, Espírito Santo e Goiás. Os estados com menores índices concentram-se no sul do país, como o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. São Paulo também está entre os três estados com mais baixa incidência. Por que não há saneamento? O Atlas analisa quatro serviços constitutivos do saneamento básico, a rede geral de distribuição de água, a rede coletora de esgoto, manejo de resíduos sólidos e o manejo de águas pluviais. Em relação à distribuição de água, os dados mostram que é na região Norte que a população recebe mais água sem tratamento - mais de 25% da água destinada para consumo humano nessa região não é tratada. O abastecimento de água cobre quase a totalidade do país, 99,4%. "Embora seja evidenciado um movimento no sentido da universalização do serviço de distribuição de água por redes de abastecimento, deve-se, contudo, ter em conta que o avanço demonstrado pelos números não significa o pleno atendimento do serviço à totalidade das populações residentes nos municípios. A pesquisa considera como servido todo município que apresenta ao menos um único distrito, total ou parcialmente contemplado com rede de abastecimento de água, independentemente da eficiência do serviço prestado e do número de ligações domiciliares à mesma", pondera o documento do IBGE. Segundo o estudo, existem 33 municípios brasileiros sem abastecimento total de água, entretanto, há outros 793, grande parte deles na região Nordeste, nos quais o abastecimento é feito de maneira alternativa, por meio de cisternas ou outros mecanismos. A coleta de resíduos sólidos, de acordo com o Atlas, também melhorou, embora a destinação desses materiais permaneça um desafio. Mais de 50% dos municípios brasileiros ainda recorrem a lixões para descartarem o lixo, apesar de a Lei Nacional de Resíduos Sólidos, que vigora desde 2010, preveja que até 2014 todos os lixões do país precisam ser fechados. Os serviços de manejo de águas fluviais também são mais estruturados nas regiões Sul e Sudeste. Neste aspecto, os municípios menores têm mais deficiências nesse tipo de serviço. Os dados do Atlas confirmam que a maior deficiência do país está mesmo no esgotamento sanitário. O chefe do Departamento de Saúde Ambiental (Desa) da Ensp/Fiocruz, Paulo Barrocas, analisa por que há pouco investimento nesse tipo de serviço. "A rede de esgoto está enterrada, então, não é uma obra que todo mundo vê, está debaixo do solo. Outra questão é que ainda existe um pouco essa mentalidade de que a solução para a poluição é a diluição, então, eu posso jogar a minha poluição num corpo d'água receptor, aquilo será diluído e irá se resolver o problema simplesmente diluindo. Só que já está claro, com todas as alterações que nós temos nos corpos d'água receptores, que há uma grande contaminação, e não apenas em megalópoles, mas também em cidades de médio e pequeno porte", explica. A professora Simone critica o corporativismo que impede que soluções baratas sejam adotadas para resolverem os problemas de saneamento da população. "Há um corporativismo do cimento, do tubo PVC. Em países mais pobres se faz inclusive tubulação de rede esgoto de bambu, basta ter um bom preparo, mas não há interesse em fazer essa tecnologia de baixo custo", pontua. Para a pesquisadora, isso gera as grandes desigualdades reveladas no Atlas. "No Nordeste, há água a 100 ou 200 metros abaixo da terra, basta escavar e fazer açudes, mas há um conflito de interesses que impede que isso seja feito. Dá para ter saneamento a baixo custo, mas outras coisas têm mais visibilidade política. O abastecimento de água ainda aparece mais, porque dá para fazer uma torre, por exemplo, mas o esgoto fica escondido, então não gera votos. Esse Atlas reflete a falta de políticas sociais", analisa. Estações de tratamento não estão preparadas para retirarem novos resíduos Paulo Barrocas alerta para um grave problema a ser enfrentado nas próximas décadas: o da qualidade da água. "Não é que a água irá desaparecer, mas se a qualidade dos nossos cursos d'água ficar muito ruim, primeiro será muito caro tratar essa água porque ela estará muito contaminada, exigirá uma série de tratamentos mais caros. Em segundo, pode chegar a um ponto que se torne inviável consumi-la", complementa. Ele diz que há hoje a contaminação da água por novos compostos, cientificamente chamados de xenobióticos, ou seja, substâncias sintéticas, que não são encontradas na natureza, mas produzidas em laboratório. O pesquisador explica que a grande dificuldade é que as estações de tratamento não estão preparadas para despoluírem a água e o esgoto desses tipos de substâncias. "São contaminantes sobre os quais não se conhecia muito. O que se espera tradicionalmente de uma estação de tratamento doméstico é que ela tire matéria orgânica, carbono, nitrogênio, fósforo. Na estação de tratamento de efluentes industriais, isso vai depender do processo industrial. Por exemplo, se é um processo de uma indústria metalúrgica, que trabalhe com metais, será necessário algum processo químico de remoção dos metais, e esses são processos específicos. As estações convencionais de tratamento de água não foram pensadas para tirar, por exemplo, os hormônios - que são exemplos de xenobióticos -, que cada vez mais são lançados", detalha. O professor diz que se não houver procedimentos específicos para removê-los, esses materiais permanecem na água. "Esses produtos decorrem de uma série de atividades industriais, principalmente da petroquímica. São principalmente compostos orgânicos, como o bisfenol, que está no produto das mamadeiras. Os agrotóxicos também entram aí. Esses aditivos químicos que utilizamos muito nos alimentos industrializados para terem um aroma, um gosto e uma cor, também. E muitos desses aditivos podem desencadear alergias, principalmente em crianças que têm um sistema imunológico que ainda está sendo desenvolvido. Uma série dessas substâncias sintéticas é lançada no ambiente sem que tenhamos uma certeza absoluta de todo o dano que elas podem causar", alerta. Para o pesquisador, a solução é evitar que esses produtos sejam lançados no meio ambiente, pensando em modificações nos modelos de produção e consumo. Problemas de saneamento e problemas sociais Paulo Barrocas destaca que as regiões com os piores índices de saneamento são também aquelas nas quais outros direitos fundamentais são precários. Ele comenta sobre como as populações, dependendo do nível de renda e poder, são atingidas desigualmente pelas falhas de políticas públicas de saneamento. "Não se constrói aterro sanitário no Leblon (bairro da zona sul do Rio de Janeiro), se construirá em um local onde as pessoas não conseguem se mobilizar, porque ninguém quer ter um aterro perto de casa. A capacidade de mobilização e de influência dos diferentes grupos da sociedade está diretamente relacionada com o poder sócio-econômico que elas têm. Então, às pessoas que têm menos poder será imposto um maior peso pelos desastres ambientais", compara. O pesquisador destaca que, entretanto, as condições de saneamento podem afetar todas as pessoas, mesmo em regiões distantes, tanto no interior quanto nas capitais. "Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, captamos água para consumo do rio Guandu. Uma cidade pequenininha pode estar contaminando o rio lá em cima e depois, nós aqui da cidade grande, vamos captar a água para beber. Às vezes a causa de um problema está em um lugar específico, mas as conseqüências do problema são deslocadas no tempo e no espaço. É difícil caracterizar as conseqüências de uma contaminação, porque às vezes aquilo irá acontecer 20 anos depois, ou dez quilômetros abaixo. Não tem como fazer uma fronteira e dizer: ‘olha, o vento não pode passar daqui para lá’. Os problemas ambientais, pela sua própria natureza, não respeitam limites políticos, geográficos, por isso necessitam sempre de uma ação conjunta", destaca. O Atlas mostrou que as condições de saneamento melhoraram mais nas grandes capitais do que no interior. Para a professora Simone Cynamon, a questão do saneamento deve ser pensada a partir de bacias hidrográficas. "O nosso território é amplamente hídrico, então, essa questão de responsabilidades não pode ser dividida exatamente entre estados, municípios e federação. Como o saneamento não pode ser localizado, ele deve ser pensado na bacia hidrográfica como um todo", opina. O Atlas também apresenta um estudo relacionando o saneamento às bacias hidrográficas. Em um dos mapas aparecem os locais onde há mais ameaça de poluição aos recursos hídricos, principalmente com o lançamento de esgoto. Há muitas ameaças detectadas em todo o território brasileiro, mas as regiões com maiores problemas são as litorâneas, com destaque para o Nordeste e o Sudeste. Legislação Apenas recentemente o Brasil elaborou duas legislações para abordar o problema dos resíduos sólidos e do saneamento como um todo. A Lei nº 11.445/2007, regulamentada pelo Decreto nº 7.217/2010, estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico no país. Já a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi instituída pela lei 12.305/2010. "É preciso que todos os entes federados participem para que essas políticas sejam implementadas. Na questão dos resíduos sólidos, a sociedade também é um dos atores que estão previstos naquela política. Portanto, sem a política não se tem nada, mas é preciso tirar essa letra do papel e aí depende da mobilização da sociedade e do interesse dos governantes", avalia Paulo Barrocas. A Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA), ligada ao Ministério das Cidades, está elaborando um Plano Nacional de Saneamento Básico (PlanSab), conforme determina a lei 11.445. De acordo com a página eletrônica da Secretaria, o plano "será um instrumento fundamental para a retomada da capacidade orientadora do Estado na condução da política pública de saneamento básico e, conseqüentemente, da definição das metas e estratégias de governo para o setor no horizonte dos próximos vinte anos, com vistas à universalização do acesso aos serviços de saneamento básico como um direito social, contemplando os componentes de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas". A SNSA foi procurada pela reportagem para comentar os dados divulgados no Atlas do Saneamento 2011, mas respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que ainda não havia concluído a análise dos resultados e que se pronunciará posteriormente. "Apesar de o saneamento como política pública remontar à década de 1930, quiçá ao século XIX, a dívida social com grande parte da população persiste enquanto um fato permanente na sociedade brasileira, constituindo um desafio a ser transposto em curto e médio prazos pelo Estado e pela sociedade em geral", conclui o Atlas de Saneamento 2011. Raquel Júnia é jornalista da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). PUBLICADO NO SITE www.correiocidadania.com.br |
Nenhum comentário:
Postar um comentário